Exatos 30 anos atrás, um novo tratado internacional sobre os direitos dos povos indígenas e tribais entrava em vigor no mundo. A Convenção 169 foi elaborada no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um dos braços da Organização das Nações Unidas (ONU). O documento é apontado por comunidades tradicionais como responsável por avanços significativos no Brasil, sobretudo a partir de 2004, quando ganhou força de lei federal.
O balanço de representantes de diferentes grupos étnicos brasileiros, no entanto, revela desafios para a implementação dos direitos previstos. Eles também lamentam movimentos que buscam questionar a adesão do país ao tratado.
“É principalmente um instrumento que veio garantir a visibilização dessas populações. Permite que elas digam para as empresas e para os empreendimentos: olha eu estou aqui e tenho que ser ouvido. Essas populações passam a ter sua existência reconhecida, podendo ser retiradas da invisibilidade e do apagamento histórico”, diz Vercilene Dias.
Considerada a primeira advogada quilombola com mestrado no país, ela nasceu no Quilombo Kalunga, em Cavalcante (GO). Realizou sua pós-graduação em direito agrário na Universidade Federal de Goiás (UFG) e hoje é assessora jurídica da organização não governamental Terra de Direitos e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “Estamos falando de um importante instrumento normativo de defesa do direito e de visibilidade de populações vulneráveis”, reitera.
A Convenção 169 foi aprovada em junho de 1989, em uma conferência da OIT ocorrida na Suíça, mas somente passou a vigorar em 5 de setembro de 1991. Ela reconhece como legítimas as aspirações dos povos indígenas e tribais em “assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”.
O tratado é resultado de uma discussão que levou em conta a situação de uma população de mais de 370 milhões de pessoas distribuídas em pelo menos 70 países, que carrega variadas histórias marcadas por discriminação, marginalização, etnocídio ou genocídio. Até hoje, porém, somente 23 nações a ratificaram, das quais 15 são da América Latina. As outras oito são Dinamarca, Noruega, Espanha, Holanda, Luxemburgo, República Centro-Africana, Fiji e Nepal.
O Brasil a aprovou em 2002 por meio do Decreto Legislativo 143 e a promulgou em 2004 por meio do Decreto Presidencial 5.051. Os tratados internacionais chancelados pelo Congresso Nacional ganham força de lei federal. Dessa forma, uma série de direitos dos povos tradicionais passou a ser incorporada à legislação brasileira. O principal deles é o direito à consulta prévia, livre e informada todas as vezes que qualquer medida legislativa ou administrativa for suscetível de afetá-los diretamente. Os desdobramentos são diversos: por exemplo, as secretarias de meio ambiente passaram a ser cobradas para ouvi-los sempre que um processo de licenciamento ambiental envolver atividades em seus territórios.
“Quando as populações se apropriam desse direito, também acabam tomando consciência de como outros direitos são violados”, observa a advogada. Segundo ela, a Convenção 169 estimulou uma maior organização das comunidades para apresentar suas reivindicações, mas a obrigatoriedade do processo de consulta tem sido sistematicamente ignorada. “As comunidades só tomam conhecimento dos projetos e empreendimentos dentro dos seus territórios a partir do momento que a empresa se apresenta com o maquinário”.
A consulta prévia, livre e informada não se restringe a empreendimentos que afetem o meio ambiente. Ela também deve ser realizada para implementação de políticas públicas de educação e de saúde e para medidas que envolvam a salvaguarda de costumes e da cultura desses povos. “Educação não é simplesmente levar conhecimento, é compartilhar conhecimento. As comunidades tradicionais também produzem conhecimento. Então não é só uma questão de oferecer acesso à escola, que já é um desafio. Mas deve-se também considerar as especificidades de cada comunidade. É preciso respeitar diretrizes específicas demandadas por essas populações”, pontua Vercilene Dias.
Além disso, essas comunidades devem ser ouvidas a respeito de medidas voltadas para assegurar empregos. Segundo a OIT, a Convenção 169 reconhece que os povos indígenas e tribais enfrentam barreiras e desvantagens no mercado de trabalho, já que frequentemente têm acesso limitado à educação e à formação profissional e seus conhecimentos e suas habilidades tradicionais não são necessariamente valorizados ou demandados.
Em fevereiro do ano passado, a entidade divulgou um relatório sobre a situação dos povos indígenas e tribais na América Latina. A taxa de informalidade entre os seus trabalhadores era de 82%, quase 30 pontos percentuais acima dos 54% para a população em geral. O documento também apontou que 31,7% dos indígenas empregados não receberam nenhum treinamento e menos de 30% tiveram acesso a educação intermediária e avançada. Nas populações não-indígenas esses percentuais foram, respectivamente 12,8% e 48%. Há outro dado preocupante: as populações indígenas e tribais representam 8,5% dos habitantes da região, mas são 30% das pessoas que vivem em extrema pobreza.
Protocolos de consulta
No Brasil, não há uma regulamentação do processo de consulta, o que gera discussões sobre seu modo de aplicação: as visões de governo, empresários e comunidades sobre como ela deve ocorrer são conflitantes. Da forma como ocorre hoje, a consulta, quando realizada, envolve procedimentos diferentes em cada região, em cada processo de licenciamento ambiental, em cada política pública.
Vercilene considera que não é questão de regulamentação, mas de boa fé, uma vez que em sua visão a Convenção é clara. “Há estados tentando regulamentar o direito de consulta sem consultar as comunidades. Contraditoriamente, querem regulamentar o direito violando o direito”, observa.
Há três semanas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) organizou um seminário para debater o assunto. O advogado indígena Paulo Pankararu considera que os artigos 6º e 7º da Convenção 169 orientam a consulta. “Quando a Convenção se refere a instituições representativas dos povos indígenas, deve se considerar como essas populações se organizaram historicamente, como tomam suas decisões. Envolve questões culturais e o direito costumeiro”, disse.
As comunidades têm construído os seus próprios protocolos de consulta. Já existem mais de 60 deles. Trata-se de um instrumento que estabelece de que forma elas querem ser consultadas. “É uma riqueza da Convenção 169, que dá possibilidade de que cada povo, com base em suas especificidades, escolha a forma como quer ser consultado”, diz Cláudia Sala de Pinho, coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira e articuladora da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil.
O Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criado em 2004 e atualmente vinculado ao Ministério da Cidadania, conta com representação de 28 grupos étnicos: indígenas, quilombolas, povos de terreiro, pantaneiros, extrativistas, ribeirinhos, pomeranos, caiçaras, geraizeiros, ciganos, entre outros. Para Cláudia Sala de Pinho, mais importante que o direito à consulta é a garantia da autoidentificação prevista logo no artigo 1º da Convenção 169. Segundo ela, é o reconhecimento de que cabe aos povos construir suas próprias identidades.
A coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira avalia que os protocolos de consulta têm se convertido principalmente num instrumento jurídico, já que no âmbito administrativo acabam sendo ignorados. “A gente tem vários casos em que a Justiça utiliza o protocolo de consulta para barrar empreendimentos, para determinar a escuta da comunidade ou para rever algum processo de licenciamento, de forma que se reconsidere impactos a uma população tradicional”, observa.
Pandemia
Em meio à pandemia de covid-19, o tratado internacional se mostrou eficaz como um instrumento protetivo por meio do qual se pode recorrer ao judiciário. Desde fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem considerando a Convenção 169 como um dos pilares para atender às reivindicações da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Por meio do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamento (ADPF) 742, foi determinado que o Ministério da Saúde elaborasse um plano para as comunidades quilombolas, muitas das quais estavam sendo ignoradas nas campanhas de vacinação de seus municípios. Eles foram incluídos na segunda das quatro fases previstas pelo Plano Nacional de Imunização (PNI) para o atendimento a grupos prioritários.
“Abriu um precedente importante. Infelizmente, na prática, o que a gente viu foi que a vacina não chegou igualmente para todos. Nem todas as comunidades foram priorizadas. Entendo que as decisões judiciais são um caminho para se efetivar o direito conquistado. Mas a efetivação do direito é mais demorado. Às vezes, demora a chegar na ponta”, avalia Cláudia Sala de Pinho.
Vercilene Dias pontua que um dos aspectos críticos na implementação da decisão foi a limitação territorial da vacinação. “A todo momento nossa identidade é questionada, numa violação à Convenção 169 que fixa a autoatribuição. O quilombola ou o indígena não deixa de ser quilombola ou indígena porque está fora do seu território. É muito complicado porque é a ausência de políticas públicas para acesso à saúde, à educação e ao trabalho que faz com que as pessoas se mudem. E aí, quando estão em outros territórios, são novamente privados das políticas públicas, dessa vez endereçadas para o seu próprio grupo étnico”.
Tratado ameaçado
Enquanto buscam concretizar seus direitos, povos tradicionais também precisam lidar com ameaças à Convenção 169. Há setores que defendem a saída do Brasil do tratado internacional. Isso é permitido a cada 10 anos, quando os países podem, por meio de uma denúncia a ser aprovada no Congresso Nacional, reavaliar sua posição de signatário.
Já tramita um projeto com essa pretensão, valendo-se da marca de 30 anos. A iniciativa não é nova. Em 2014, um projeto similar foi apresentado. Na época, argumentou-se que a reavaliação da posição brasileira poderia ser feita uma vez que a data de promulgação estava completando seus primeiros 10 anos. Uma audiência pública foi decisiva para desarticular a proposta: Ministério Público Federal (MPF), Ministério da Defesa e Ministério das Relações Exteriores se manifestaram contrários à denúncia. O MPF se baseou no princípio da vedação do retrocesso social, segundo a qual é proibido que o legislador reduza direito social já materializado em âmbito legislativo e na consciência geral.
Dessa vez, a questão reapareceu pelo Projeto de Decreto Legislativo 177/2021, de autoria do deputado federal Alceu Moreira (MDB). Desde maio, a questão se encontra sob análise da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Na justificativa da proposta, o parlamentar sustenta que o tratado internacional é supérfluo, pois não supera a Constituição Federal. Segundo ele, a Convenção 169 gera inconvenientes e é desnecessária diante da já protetiva legislação brasileira sobre os direitos indígenas. “A restrição de acesso do Poder Público e dos particulares nas terras indígenas sem o consentimento desses indivíduos, assim como o fato de se necessitar de prévia autorização para qualquer ação governamental na Terra Indígena, acaba por inviabilizar o projeto de crescimento do Brasil”, escreveu.
A coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira conta que já existe uma rede de entidades representativas das comunidades tradicionais mobilizada contra o projeto. Cláudia Sala de Pinho também afirma que uma frente parlamentar, cuja coordenação possui lideranças dos povos tradicionais, vem se reunindo. “Queremos a garantia de existência. Vamos continuar lutando pelo nosso direito de existir”, diz ela.